Até o início da década de 50 do século
passado quase não se falava de missão de Deus (Missio Dei). Em 1932, o teólogo
Karl Barth, retomando algumas reflexões dos padres da Igreja do século II-V,
afirmou que a missão vinha de Deus, era iniciativa de Deus. Bela intuição, mas
não pegou, não chegou a orientar o dia a dia das Igrejas. Na época, falava-se
só da missão da Igreja (Missio Eclesiae). Havia uma espécie de separação, de
ruptura, entre Deus e a missão da Igreja. Deus fazia parte da vida espiritual
das Igrejas, sobretudo das pessoas religiosas, e só. As Igrejas deviam
‘inventar’ a própria missão no mundo. Missão das Igrejas significava, quase
sempre, implantar a Igreja lá onde ela ainda não estava presente, com suas
várias estruturas. Estes lugares eram chamados “terras de missão”.
Com frequência essa visão de missão
jogava as Igrejas numa concorrência desleal. Cada Igreja enviava seus
missionários e suas missionárias, para fortalecer sua presença com várias
obras, sobretudo a serviço dos mais necessitados (escolas, hospitais,
orfanatos, colégios). A Igreja Católica, por sua rica tradição de intensa
espiritualidade e de generosa caridade, e por dispor de inúmeros missionários
(as) destemidos, totalmente consagrados ao crescimento da Igreja, avançou muito
nos lugares ditos “de missão”. Falava-se de “implantar a Igreja”, com novos
batizados, com organização territorial (paróquias, dioceses), com obras
sociais, e com a criação do clero local (padres e bispos). Mas a relação
profunda entre missão e Deus e missão da Igreja praticamente não existia,
algumas vozes isoladas a lembravam, mas sem impacto na vida das Igrejas.
Em 1952, na cidade alemã de Willingen,
houve uma Conferência Missionária promovida pelo Conselho Mundial das Igrejas
(CMI). Ainda estavam abertas as feridas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
com mais de 50 milhões de mortos, provocada pela truculência do ditador Hitler
e do fascismo-nazismo. Várias Igrejas silenciaram diante da guerra absurda e
dos crimes contra a humanidade que aconteceram. Muitas consciências ficaram
abaladas, humilhadas, perdidas.
Essa dura situação provocou
questionamentos sérios entre os participantes da Conferência Missionária de
Willingen. Muitos se perguntavam: que Igrejas são essas se muitos de seus
líderes se calaram diante de massacres absurdos? Onde está a missão das
Igrejas? Os questionamentos levaram a descobrir que as Igrejas não podem
inventar a missão, não são donas da missão. Antes e acima das Igrejas está o
Senhor. E aí voltou a intuição de Barth: a missão vem de Deus, brota do coração
da Trindade Santa. Antes da missão das Igrejas está a missão de Deus. Antes de
falar da missão da Igreja é preciso conhecer a missão de Deus. Ficou mais claro
que a missão faz parte da natureza de Deus.
A descoberta da missão de Deus, fonte
geradora da missão das Igrejas, foi muito importante. Aliás, durante e após a
Conferência de Willingen, o entusiasmo pela missão de Deus foi tão grande que
alguns – baseando-se em Mateus 24,14 chegaram a considerar desnecessário o
envolvimento das Igrejas na missão de Deus. Deus iria realizar a sua missão de
qualquer jeito, sem depender das Igrejas. Outros, porém, contestaram afirmando
que a missão de Deus exige a ação missionária das Igrejas. Foram intuições e
descobertas significativas, mas não chegaram a questionar o cotidiano da vida
das Igrejas.
Dez anos depois, no Concílio Ecumênico Vaticano II, a intuição da Missão de Deus voltou, para iluminar o caminho da
Igreja Católica no mundo. No bom clima do Concílio foram surgindo convicções
importantes: a Igreja está a serviço da missão de Deus, existe para isso, só
para isso. Ficou mais clara a relação entre missão de Deus e missão da Igreja.
Essas redescobertas abriram novos caminhos para a espiritualidade missionária,
definiram melhor o papel da Igreja Católica no mundo. Não foi fácil, foi um dos
assuntos mais debatidos do Concílio (07/12/1965), que leva o título “Sobre a
atividade missionária da Igreja" (Ad Gentes). Impressionou a aprovação
praticamente unânime dos bispos presentes no Concílio.
O fundamento teológico do Decreto é
claro: a missão nasce do coração da Trindade. A missão de Deus é salvar toda a
humanidade. Esta missão de Deus se revelou plenamente na missão de Jesus de
Nazaré, o Cristo: “Deus amou de tal forma o mundo, que entregou seu Filho
único, para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida eterna”
(Jo 3,16). A missão da Trindade Santa, plenamente revelada na missão de Jesus,
passou a ser o referencial indispensável da missão da Igreja no mundo (ver Ad Gentes, capítulo 1).
O decreto conciliar influenciou
positivamente a vida da Igreja, porém, podia e devia ser bem mais, hoje também.
A missão de Deus ainda não marca a organização e as estrutura das Igrejas, com
consequências muito negativas, inclusive a divisão e a falta de testemunho. Estruturas e mentalidades
amarradas sufocam o sopro inovador e fecundo do Espírito Santo.
Na América Latina, o decreto conciliar
iluminou as quatro Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano que
vieram depois (especialmente Medellín em 1968 e Aparecida em 2007). Mas, mesmo
com todos esses passos, a missão de Deus não é, de fato, a fonte inspiradora e
permanente da missão das dioceses, paróquias, comunidades e movimentos
eclesiais. Perguntamo-nos: a liturgia, com seus ritos, símbolos, homilias,
revela a missão de Deus? Nas assembleias pastorais, antes de tomar decisões
importantes, ouve-se a pergunta: Com essa decisão, estamos na linha da missão
de Deus? E nos discernimentos da vida pessoal leva-se suficientemente em conta
a fidelidade à missão de Deus? Parece mesmo que a missão de Deus ainda não
entrou na pastoral cotidiana, ficou mais nos documentos.
Do livro A vida e missão do Pe. luis Mosconi - 2012 - imagens da internet
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